2021/11/29

REFÉM TECNOLÓGICO (A SEQUELA)

Fosse esta crónica um episódio de uma qualquer série de grande sucesso (pois não faço a coisa por menos!) e a introdução – ou resumo do que se passou anteriormente – mostraria que estive em Lisboa, para a Feira do Livro e que, sendo eu alérgico às novas tecnologias, resolvi levar emprestado o telemóvel da minha esposa. Pelo menos para conseguir tirar algumas fotografias. E como puderam ler, ainda nem sequer tinha saído do aeroporto e já estava a fazer asneiras… Antes do certame – e como nada se consegue fazer com a barriga vazia – resolvi satisfazer uma das mais básicas necessidades conhecidas: a fome! Entrei num café, fiz o pedido e transportei-o num mísero tabuleiro de plástico até à mesa. Digam lá, nada como o self-service! Como eterno romântico que sou, durante a refeição, resolvi ligar à minha esposa. Tenho a certeza que ela queria saber pormenores sobre a minha chegada… e estado de conservação do seu telemóvel! A típica conversa de casados correu bem: discutiram-se (no bom sentido) os problemas a resolver, as contas a pagar e, principalmente, a previsão de chegada a casa, pois há mais coisas para fazer que andar armado em escritor pela capital! Todos estes temas acompanhados de termos carinhosos, como “amor” e “carinho”. E confesso: estando ali sozinho, senti muitas saudades de casa!

Antes de desligar o telemóvel – e finalizar a conversa – despedi-me com muitos beijinhos e um “amo-te, amor!”. Envergonhado, é certo. Quando pousei o telemóvel junto ao tabuleiro, reparei que o senhor da mesa ao lado ficou estupefacto a olhar para mim, quase que com vontade de dizer algo, mas sem coragem para o fazer. Para além de ter achado que era um tremendo coscuvilheiro, senti que ficou aterrorizado com algo que viu! Os seus olhos alternavam entre mim e o visor do telemóvel estatelado em cima da mesa. Num vislumbre de olhar, enquanto o brilho do ecrã desvanecia, foi possível verificar o nome da pessoa com quem eu tinha estado a falar, em termos tão apaixonados: “Miguel (marido) ”! Caramba, agora percebe-se o ar assustado do homem da mesa ao lado…
 

2021/11/10

NUM PERFEITO VAZIO

O meu percurso laboral junto da Metro do Porto atingiu os 2700 dias de condução. Para os amantes da estatística, posso indicar que gastei 21600 horas (da minha vida) aos comandos das composições. Milhares de rostos desconhecidos e olhares que se cruzam sem qualquer familiaridade. De vez em quando recebo um sorriso ou um cumprimento. Gesto demasiado raro numa sociedade que prefere viver com sentimentos negativos. Talvez isso explique a cuspidela no vidro quando passei, sem serviço, na estação de Francos. E, pelo aspecto esverdeado da mesma, aconselho o rapaz – se estiver a ler esta crónica – a procurar um médico! Há mais de quarenta minutos que não digo uma palavra. E sei que ainda falta bastante para terminar esta parte do turno. Estou confinado na cabina de condução sem qualquer distracção ou ligação ao mundo exterior. A única comunicação autorizada é com o posto de comando em caso de anomalia (ou avaria) verificada na rede ferroviária. O relógio parece que se move em câmara lenta. Sinto na pele vários dias a acordar ainda de madrugada, enquanto a cidade dorme. O sono, aliado ao silêncio e à excessiva mecanização de gestos, é um inimigo fortíssimo que se manifesta durante a condução. Que bom seria, de vez em quando, ter alguém com quem falar!

Penso na minha família. Sei que estes turnos não permitem que lhes dê a atenção desejada. Por vezes, para conseguir acompanhar os momentos mais importantes, tenho que fazer mais contas e trocas que o Ministro das Finanças para apresentar o orçamento. Volto a reparar no vidro. A cuspidela já se espalhou e, pelo aspecto esverdeado, fico preocupado com o estado de saúde do rapaz! Tal gesto de animosidade é vulgar e corriqueiro. Esta juventude revela uma crise de valores e falta de educação preocupante. Tendo em conta a facilidade de locomoção e falta de uma fiscalização condigna, o sistema de Metro ligeiro é considerado um paraíso. Tudo é permitido! Lixo, cães de raça sem açaime, fumadores, javardos, etc. E contam com a total passividade e conivência dos restantes utilizadores! Reina a anarquia, que tem a sua expressão máxima com os que resolvem, como trogloditas, bloquear as portas da composição e são os primeiros a reclamar pela mínima avaria, falha ou erro do maquinista. Há um afastamento na relação com os passageiros. Aquele que hoje me cumprimenta, amanhã será o primeiro a exigir a minha crucificação. Mesmo quando o veículo – por razões de frequência e horário – passa na estação sem serviço comercial. Temo pela sociedade que perdeu a vontade de lutar pelos valores e ideais. Agora, procurem o rapaz para o levar ao médico. Aquilo, no vidro, tem mesmo fraco aspecto…